Hoje fui ver um concerto ao Coliseu do Porto. Concerto de Ano Novo com ballet incluído.
Dei por mim várias vezes, como me costuma acontecer, perdida entre mil e um pensamentos, a passar a vida de fio a pavio, o que foi e há-de ser ou devia ser...
É um pouco estranha tanta divagação. Eu gosto de música, e no entanto não me consigo concentrar nela. Quando foco a minha atenção é para tentar distinguir que linha está a fazer este ou aquele instrumento. Por vezes, desafios semi-impossíveis, como ver a senhora da harpa tocar e tentar descobrir, no meio de tanta confusão, quais as notas que ela está a emitir. Ou, claro, para assistir aos pares de bailarinos, altura em que praticamente só ouço silêncio e me perco totalmente. Ora a perceber o que eu saberia ou não fazer ou, numa atitude mázinha, a tentar perceber quem é que erra nisto e naquilo, e a tentar perceber as falhas. Apercebo-me com algum desgosto que o tempo foi passando, e ele é sempre soberano, e rouba de nós mesmo as partes que antes considerávamos como fundamentais para nos definir. Por isso por vezes invento defeitos, só para achar que ainda pertenço um pouquinho àquele mundo, ainda que racionalmente saiba que não.
Porque é que gosto de pensar que adoro música mas não consigo ouvi-la de fio a pavio no seu estado mais puro? Difícil de perceber. Sei que se tivesse uma canção à qual pudesse prestar atenção ao mesmo tempo seria mais fácil. Bem... nalgumas músicas até tinha. Mas canto lírico inviabiliza a minha compreensão dos poemas na sua base...
Tenho saudades de dançar. Não sei porque gostava tanto de o fazer. Não tinha particular aptidão, muito pelo contrário. O meu biótipo está longe do desejável, e os tendões pouco extensíveis idem. Durante todo o percurso tinha algo ao qual prestar atenção especial e corrigir: primeiro os braços estavam demasiado fluídos e iam caindo das posições onde pertenciam. Batalhei para ultrapassar isso, e consegui. Novo problema - a rigidez que imprimi aos braços estendiam-se às mãos. Agora, antes de cada exercício tinha de as sacudir para que ficassem mais soltas. Depois, as temíveis pontas. Nunca consegui uma posição totalmente correcta porque os meus pés simplesmente se recusavam a uma experiência tão radical, e mandavam-me secretamente ganhar juízo. Por fim, e quando tudo já estava errado, o pescoço. Não seguia linha naturais e prejudicava tudo o resto.
No último exame tive a nota mínima possível que me permitia passar. Apesar de tudo, e dadas as condições em que o fiz, soube a muito. A amargura veio de saber que nunca tive notas que se destacassem. Sempre foram medianas, apesar do esforço. O esforço não conquista tudo. Gosto de acreditar que fiz muito do que me era possível, apesar de tudo.
A dança é para mim como que a forma de arte mais primitiva, porque não necessita de mais nada senão do corpo com que nascemos (se este não se lembrar de pregar partidas). Não são precisas canetas ou papel, pincéis e pigmentos, martelo e cinzel, instrumentos... nada. Só imaginação e possibilidade de movimento. Certamente que é enriquecida quando acompanhada de música (e nela se sustem, em grande parte) e de tudo o resto que cria o ambiente a transmitir - os cenários, guarda-roupa, maquilhagem... espirais de folhos, rouge, fatos estranhos e tule, muito tule. Mas ainda que despida de tudo isso, é possível existir. Basta trautear uma melodia na nossa mente e, cruzando o silêncio, criar imagens, histórias, personagens. Mesmo que ninguém veja. Mesmo que o palco seja um metro quadrado do nosso quarto, e o público o nosso próprio olhar a vigiar o espelho. Ela existe...
Mas é do tule que tenho saudades...
Da exigência. De trabalhar 2 horas para 14 segundos de coreografia, e no dia seguinte mudar tudo de novo. De passar tardes a pintar adereços e cenários. Da música que alguém mais sábio que nós escolhe, e que nos encanta. De ficar a espreitar nos bastidores, e ver os mais espectaculares solos acontecerem, e continuar a ficar boquiaberta, mesmo após as dezenas de ensaios que o precederam. Das palmas no fim. De fazer parte de algo maior, e saber que outros dependem de nós e do que quer que possamos dar, seja pouco ou muito. Saudades de almejar a perfeição, mesmo sabendo que nunca a iria atingir.
Saudades de me sentir livre dentro de mim mesma...